'Mulata bossa nova' venceu racismo, virou miss e inspirou marchinha

26/02/2017

http://www.missnews.com.br/historia/mulata-bossa-nova-venceu-racismo-virou-miss-e-inspirou-marchinha/

1723    0

JULIANA GRAGNANI
DE SÃO PAULO


26/02/2017 02h00


Um Gordini chumbo quase fez o Brasil perder sua primeira miss negra e uma das mais clássicas marchinhas de Carnaval do país.


Rio de Janeiro, 1963. Vera Lúcia Couto, então com 18 anos, recusava convites para participar do concurso ao Miss Renascença, clube de classe média no Rio de Janeiro fundado por negros. Seu pai gastaria muito com as roupas necessárias para concorrer e ele havia lhe prometido o carro de presente. Ela preferiu o carro.


Rio de Janeiro, 1964. Vera, já com 19 anos, cedeu às insistências. Mestiça, filha de mãe enfermeira e pai dono de uma empresa de construção, foi descoberta pela dona do cabeleireiro que ela frequentava, uma sócia do Clube Renascença.


Como Miss Renascença, concorreu ao concurso de Miss Guanabara (antigo Rio). Em junho daquele ano, a Primeira Página da Folha informava (ao lado do título "Dops prende estudantes no Rio"): "os cariocas escolheram Miss Renascença Vera Lúcia Couto Santos, uma mulata de olhos castanhos, para Miss GB-64.


No Rio, houve protestos, mas a torcida do Renascença Clube fez coro com o júri e tomou conta do Maracanãzinho". Hoje, aos 72 anos, Vera lembra: "Gritaram: 'Sai daí, crioula. Seu lugar é na cozinha!'. Eu era muito menina, me entristeceu, fiquei bem constrangida", afirma.


Com o título, tornou-se a primeira miss negra do Brasil. E ganhou uma música: Vera Lúcia Couto, 72, é a "mulata bossa nova" da marchinha "Mulata Iê Iê Iê" (aquela do "Mulata bossa nova, caiu no hully gully; e só dá ela, ê ê ê ê ê ê ê, na passarela"). Hoje a música é tema de debate entre mulheres negras, que discordam do uso do termo "mulata" -que vem de "mula".


Da plateia, João Roberto Kelly, 78, admirou o "passo bastante original" de Vera. "Ela fazia um peão, um rodopio, dava uma rodada na passarela. Achei tudo aquilo muito interessante, sua maneira esguia e bonita de desfilar", afirma. Ao entender essa forma de desfilar "mais como música e balanço", escolheu traduzi-la em ritmos. Por isso ela "caiu no hully gully". "Eu tinha algum traquejo na passarela", admite ela.



MISS BRASIL


Como Miss Guanabara, Vera se classificou para disputar o título de Miss Brasil. "De cabelos pretos, olhos castanhos, 1,70m de altura, 60 kg, 64 cm de cintura, 92 cm de busto, 93 cm de quadris, 34 cm de coxa", como descreveu esta Folha, ficou em segundo lugar –perdeu para a paranaense Ângela Vasconcelos. A primeira Miss Brasil negra só seria eleita duas décadas depois, em 1986.


Vera viajou pelo mundo, participando de outras competições. Disputou o Miss Beleza Internacional em Long Beach, nos EUA –a primeira mulher negra a representar o Brasil em um concurso como aquele. Viajou para a Europa ("Amei aqueles jardins com quiosques da Áustria, as orquestras tocando, os velhinhos tomando sol"), para países da América do Sul. Viajou pelo Brasil todo, sempre na companhia da mãe.


Certa ocasião, fez um discurso na Assembleia gaúcha: "Comecei dizendo que tinha um grande orgulho de ocupar um lugar que tinha sido ocupado pelo pai do povo, Getúlio Vargas". "Foi uma loucura. Como é que você fala isso em plena 'revolução'? Eu falei: 'Se ele morreu por nós, eu morreria também. Era coisa da juventude", ri.


Foi "totalmente" contra o golpe de 1964 ("quem não foi?") e hoje diz ser "apolítica, na atual conjuntura", mas ter "muita pena de Dilma não ter dado certo porque era a primeira mulher presidente". Casou-se aos 26 anos com um dentista, descendente de italianos. "Nos conhecemos ele dirigindo o carro dele, eu dirigindo o meu. Rolou aquela 'paquerinha'", ri. Diz ter sofrido por amor ("ele era muito galinha"). Separou-se aos 33 anos. Teve dois filhos.


MELANCOLIA


"Ela sempre me contou a história com muito glamour e nostalgia", diz sua filha, Christiane, 44. A mãe, diz, é apaixonada pela mais nova dos três netos, Maria Isabel, 4. "Minha filha puxou minha mãe. E minha mãe sempre pede para ela desfilar e fala: 'Ela vai ser miss também!'". Em sua casa, em Niterói, cozinha para os filhos e netos e passa o tempo na piscina.


E até hoje trabalha muito. Na quarta (22) antes do Carnaval, só pode atender a Folha às 22h, depois do trabalho, para onde havia ido de manhã. É assistente da diretoria de operações da Riotur, onde trabalha desde os anos de 1980. Foi indicada pelo compositor de "Mulata Iê Iê Iê", presidente da empresa de turismo do Rio naquela época.


"Atualmente nem gosto tanto de Carnaval. Por causa do meu trabalho, já se tornou lugar comum", diz ela, simpatizante do Império Serrano. Volta e meia, ainda é chamada por amigos de "mulata bossa nova", claro –um colega no trabalho sempre passa por ela cantando os versos, que ela diz não achar ofensivos: "na época em que a música foi feita não havia essa conotação". "Fiquei muito satisfeita e orgulhosa de receber uma homenagem que está aí há mais de 50 anos."


Melancólica, diz se arrepender de não ter investido na carreira artística. Gostava de atuar ("teatro, não TV") e de cantar (sua cantora favorita: Aretha Franklin). "Acho que fui um pouco covarde nesse sentido. Me amedrontei um pouco de me lançar".


No trabalho, às vezes fica "um pouco tristinha no canto", às vezes "solta umas besteiras", diz Maria das Graças Pinheiro, 62, colega da Riotur e sua amiga há mais de 35 anos. "Ela não é de falar palavrão, mas de vez em quando solta umas perolazinhas", ri.


Vera diz ter poucos amigos e que chora com "a falta de amizade e com a solidão". Mulata Bossa Nova, faz questão de ressaltar que sente muito orgulho de sua história, principalmente de ter representado mulheres negras em um espaço onde não havia representatividade.


http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1862072-mulata-bossa-nova-venceu-racismo-virou-miss-e-inspirou-marchinha.shtml


 

Talvez você se interesse também por:
COMENTÁRIOS - Clique aqui para fazer o seu
Novo comentário
Nome

E-mail (não será mostrado, mas será necessário para você confirmar seu comentário)

Comentário (de 1000 caracteres)
Nota: antes de enviar, certifique-se de que seu comentário não possui ofensas, erros de ortografia ou digitação, pois estará sujeito a avaliação e, também, não poderá ser corrigido.

Seja o primeiro a comentar.

Ⓒ MissesNews.com.br  |  Desenvolvimento: