A MISS DO NARIZ SUTIL

01/06/2009

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EDIÇÃO 33 | JUNHO DE 2009_anais da beleza


"Essa é linda, mas eu demolia e transformava num monumento", diz o missólogo


PAULA SCARPIN 


O cirurgião afinou o nariz de Bruna e usou a gordura da lipoaspiração da cintura – centrifugada e misturada com células-tronco – para erguer as maçãs do rosto
Numa tarde de maio do ano passado, uma morena bonita entrou no escritório de Evandro Hazzy, em Porto Alegre, para pleitear uma vaga no concurso Miss Rio Grande do Sul. Faltavam só vinte dias para a eleição da representante gaúcha e, para piorar, a moça era de Canoas, cidade que já havia escolhido a sua candidata. Como a jovem levava jeito – era alta, magra, tinha um sorriso fotogênico – apesar dos cabelos malcuidados e de espinhas no rosto, Evandro Hazzy não a dispensou. “Você tem parentes ou alguma ligação com outra cidade gaúcha?”, indagou. A morena arriscou, insegura: “Minha família tem uma casa de veraneio em Xangri-lá.” De bate-pronto, Hazzy, coordenador do concurso, elegeu Bruna Felisberto Miss Xangri-lá, e desandou a dar conselhos para tratar a pele e o cabelo.


Baixinha e gordinha até a puberdade, Bruna nunca imaginou viver da beleza. Ao espichar rapidamente, chegando a 1,80 metro, começaram as sugestões de que fizesse como a irmã mais velha e seguisse carreira de modelo. Ela não se animou. “Via a Vanessa se matar de trabalhar em São Paulo só para pagar as contas do mês e pensava que aquilo ali não era para mim”, disse.


Aos 16 anos, sua mãe, funcionária do INSS, foi transferida para Salvador, e Bruna a acompanhou. Terminou o ensino médio na Bahia e voltou ao Sul para prestar vestibular em medicina. Não conseguiu entrar de primeira e, um ano depois, foi aprovada no curso de biomedicina na Universidade Federal. Aos 21 anos, havia passado da idade para ser modelo, mas continuavam as sugestões de que aproveitasse a beleza, agora num concurso de miss. “A faculdade tinha dado uma acalmada e pensei: por que não?” Procurou Evandro Hazzy naquela mesma tarde de maio.


Bruna percorreu a passarela com a segurança de quem, aparentemente, desfilava desde criança. Conquistou os jurados e, para surpresa de Hazzy, levou o título. “Nas condições em que eu a conheci, não era possível prever a vitória”, disse ele.


Hazzy ainda era menino, e se chamava Evandro José da Silva, quando começou a se interessar por misses. Sua cidade natal, Santa Maria, a 290 quilômetros de Porto Alegre, tem tradição em concursos de beleza. O Rainha das Piscinas, promovido pelos clubes da cidade, é mais antigo até do que o próprio Miss Brasil. Aos 8 anos, Evandro já brincava de missólogo com colegas da escola. “Os meninos eram jurados e as meninas desfilavam”, lembrou. “A vencedora recebia uma faixa de papel higiênico que eu mesmo fazia.” Tentando mudar os interesses do garoto, seu pai lhe deu de presente um Forte Apache, brinquedo inspirado no faroeste americano. “Mas nem o Forte eu perdoei”, disse Hazzy. “Usei os índios e os soldadinhos como misses, com faixas pequenininhas e tudo.”


Lendo o que aparecia pela frente sobre misses e concursos, Evandro Hazzy passou a acompanhar o trabalho do venezuelano Osmel Sousa. “O Osmel é o papa da missologia, meu muso inspirador”, comentou. Em 1989, foi convidado a conhecer a obra do mestre: os bastidores da preparação das candidatas a misses na Venezuela. “Fui como um coroinha de Igreja católica, para xeretar tudo”, contou. Nos dez anos anteriores, a Venezuela ganhara três vezes o título de Miss Universo. “Logo que cheguei, encontrei as meninas todas malhando, num tipo de granja. Elas tomavam injeções toda hora, com substâncias para tirar celulite e deixar a musculatura mais firme. Aquilo me marcou.” Hazzy voltou de lá com a idéia de transformar o Rio Grande na, como diz, “Venezuela brasileira”.


O missólogo ficou conhecido fora de terras gaúchas em 2001, quando preparou Juliana Borges, que ficou conhecida como “a miss das dezenove plásticas”. Numa entrevista à Folha de S.Paulo, a Miss Brasil daquele ano amenizou o número de cirurgias: “Tem um pouquinho de marketing nisso, sabe?” Explicou que o médico e Hazzy calculavam cada intervenção como uma plástica diferente. A prótese de silicone de cada seio, por exemplo, contabilizava duas operações, a lipoaspiração de cada lado da cintura também. “Tu já viu alguém mexer em um peito e não alterar o outro? Tirar gordura de um lado e não tirar do outro?”, perguntou ela.


Em 2002, outra gaúcha e pupila de Hazzy venceu o Miss Brasil. Mas não foi o título que fez Joseane de Oliveira ganhar projeção. Recém-eleita, ela participou do programa Big Brother Brasil e, depois de eliminada, confessou no Domingão do Faustão que era casada havia cinco anos – ou seja, violara uma regra do concurso e perdeu o título. A história foi parar no New York Times e Evandro Hazzy, pegando carona no alarde, consolidou a imagem de mago da beleza. 


Como o Rio Grande do Sul, por tradição, é o primeiro estado a eleger sua representante no Miss Brasil, Bruna tinha quase um ano para se preparar para a disputa nacional. “Essa antecedência toda permite que nossa candidata possa treinar postura, passarela, retocar alguma coisa na aparência que não esteja harmônico”, explicou Hazzy. Por “retocar”, entenda-se cirurgia plástica. Mas houve quem discordasse. “Na mesma noite em que a Bruna foi eleita, eu puxei o Evandro e disse: ‘Esse rosto aí eu acho que não tem que mexer, ela está bem proporcional'”, lembrou o cirurgião plástico Denis Valente.


Quando ainda fazia residência, Valente chamou a atenção de Almir Nácul, cirurgião plástico de Porto Alegre que aparece bastante em programas matutinos de televisão. Hoje eles dividem o mesmo consultório e são especialistas em “belezas exacerbadas”, como definem as aspirantes a miss, modelo ou atriz. O trabalho de Almir Nácul aumentou quando Hazzy virou coordenador do concurso de miss. Seguidor da metodologia venezuelana, o missólogo não acredita em beleza natural. Na minha frente, apontou para uma candidata cujos traços finos lembravam um pouco Ieda Maria Vargas, gaúcha que trouxe o primeiro título de Miss Universo para o Brasil, em 1963, e sentenciou: “Essa é linda, mas eu demolia e transformava num monumento.”


Denis Valente faz retoques em candidatas a misses Rio Grande desde 2002. Foi jurado uma única vez, no concurso que elegeu Rafaela Zanella, que seria a Miss Brasil em 2006. Evandro Hazzy apresentou o cirurgião à miss, que estudava medicina. Assunto não faltou: estão juntos há três anos, e Rafaela cogita seguir ela também a carreira de cirurgiã plástica. No concurso de miss gaúcha de 2009, foi a vez de ela ser jurada, e Valente acompanhou a noiva a Gramado.


No dia seguinte ao concurso, Hazzy procurou Denis Valente para lhe dizer que outro cirurgião plástico de Porto Alegre havia se oferecido para operar a miss eleita – Bruna – de graça. Pelos anos de amizade e parceria, Nácul e Valente não cobravam pelo trabalho nas misses de Hazzy. Ele só precisava pagar os custos de hospital, anestesia, próteses e demais materiais. Mas Nelson Heller, o cirurgião que havia feito a proposta, operaria na própria clínica e não cobraria nenhum outro custo adicional. Valente conta que não quis cobrir a oferta e disse: “Olha, Evandro, nesses termos eu não tenho interesse. Nunca paguei para operar ninguém, não vou pagar agora.”


Nas primeiras entrevistas que deu depois do concurso, Bruna disse que não tinha intenção de se submeter a cirurgias plásticas. Em uma coluna social do Diário Gaúcho, a colunista Lis Silveira comentou: “Ao contrário da Natália Anderle, Miss Rio Grande do Sul e Miss Brasil 2008, a Bruna não aceita todas as sugestões do missólogo Hazzy. O Evandro quer que ela faça plásticas, mas ela não está muito a fim.”


Mas logo em seguida o portal de notícias da Globo trazia a manchete “Miss RS decide fazer plásticas para concorrer a título nacional”. Na reportagem, Bruna disse ter sido convencida a fazer uma lipoaspiração na região da cintura e a colocar uma pequena prótese de silicone, “algo perto de 180 mililitros, nada muito grande”. Entre a eleição e a primeira consulta com Nelson Heller se passaram apenas três dias. Na quarta-feira, 11 de junho, Bruna fez a primeira cirurgia. “O Evandro falou que, além da lipo e do silicone, iam fazer um retoque na pontinha do meu nariz, para deixar mais harmônico”, contou a miss. 


A clínica de Nelson Heller tem as paredes cobertas de diplomas e certificados de comparecimento em congressos e palestras de cirurgia plástica. A sala de espera, com o pé direito duplo, é toda decorada com estátuas e bustos ao estilo romano, além de um cartaz do Simpósio Internacional de Rinoplastia de Goiás, e um quadro com os dizeres: “A Clínica Heller, a Menthor e a Moser Medical Group, às quais o doutor Nelson Heller presta consultoria, sentem-se honrados em ter participado na realização dos sonhos de Natália Anderle em tornar-se Miss Brasil 2008.”


O consultório e a sala de cirurgia de Heller ficam no andar de cima. No lugar do jaleco branco, o cirurgião atende todo de preto, com óculos espelhados de aro dourado. Nas costas da camisa lê-se, em prateado, Black is beautiful, em letras góticas. Ele disse que sua especialidade é a rinoplastia: “Eu sou um cirurgião de nariz muito solicitado. Assessoro três clínicas na Europa: duas na Alemanha e uma em Viena, Áustria, que visito pelo menos três vezes por ano. E a cada vez eu opero vinte narizes lá.”


Evandro Hazzy acompanhou de perto a primeira cirurgia de Bruna. “Fui como convidado e participei daquela marcação inicial”, contou. “O Nelson me disse: ‘Evandro, vou levantar aqui, vou puxar aqui, vou aumentar aqui.’ Porque eu tenho um olhar, eu sei o que é desarmônico para uma miss.” Heller completou: “Eu e o Evandro temos uma afinidade muito grande, ele é uma pessoa muito inteligente, tem senso estético.” Juntos, optaram por uma prótese de 325 mililitros em cada seio, pouco menos dos 350 mililitros de uma lata de refrigerante. O cirurgião também afinou a parte superior do nariz de Bruna, que, segundo ele, “era muito largo, não fotografava bem”, e utilizou a gordura da lipoaspiração da cintura para erguer um pouco as maçãs do rosto.


Nelson Heller usa a própria gordura do paciente, centrifugada e misturada com células-tronco, para fazer os preenchimentos. “Eu tiro a gordura com uma lipoaspiração normal”, explicou. “Depois, minha enfermeira extrai o sangue da pessoa, centrifuga, e tira dele os fatores de crescimento, as plaquetas e as células-tronco. A isso é agregada a gordura.” Segundo o cirurgião, o preenchimento com a mistura é mais adaptável e resistente.


Bruna não sabia que passaria pelo procedimento. “Eu não queria uma bochecha maior, ninguém tinha falado comigo sobre isso”, me disse a miss. “Depois, achei que era inchaço da operação. Quando soube o que aconteceu, fiz uma drenagem linfática para me livrar do volume.” Ela também penou para se adaptar com os novos seios, enormes e pesados. 


Passado o inchaço no rosto, Bruna se deu conta de que havia algo errado com o nariz. A dificuldade para respirar não diminuía, a parte de cima estava cavada e uma cicatriz, bem no meio do dorso, não desaparecia. “O doutor Heller dizia que estava lindo, que ia ficar ótimo, e como eu nunca tinha operado o nariz antes, tentava acreditar que ia voltar ao normal.” Com a autoestima baixa por causa das modificações no rosto, Bruna evitava sair de casa. “Quando eu saía, mesmo cheia de maquiagem, sempre tinha alguém que batia foto em alguma festa, e essas fotos iam parar na internet”, afirmou. Nos muitos fóruns de discussão sobre misses na internet – os chamados “voys” –, surgiram comentários sobre o nariz de Bruna e que ela não tinha mais chances na disputa. Os mais maldosos só se referiam a ela como “Bruna Jackson”, numa referência ao cantor Michael Jackson. Um internauta postou fotos de Bruna antes e depois da cirurgia, com a trilha sonora de Maysa cantando Meu mundo caiu. No final, quando a cantora diz “você conseguiu/ e agora diz que tem pena de mim”, aparecem fotos da miss abraçada a Evandro Hazzy.


“Ela passava o dia vendo essas barbaridades na internet e chorando”, contou a mãe da miss, Miriam Felisberto. “Se qualquer menina normal fica chateada de ter que sair de casa com uma espinha no rosto, imagina se tu vai concorrer ao Miss Brasil e destroem teu nariz.” Miriam disse que Bruna sempre teve o nariz mais bonito das três filhas. Vanessa, a mais velha, foi a primeira a operar, logo que resolveu ser modelo. Amanda, a mais nova, também se operou com Nelson Heller, e seu nariz ficou com um probleminha, mas, segundo Bruna, “nada comparado ao meu”. A moça reclamou que, desde a cirurgia, ficara cada vez mais difícil falar com o preparador: “Eu deixava recado pedindo para ele me ligar, mas ele nunca retornava.” Hazzy justificou a desatenção dizendo que assumira a coordenação do Curso Superior de Tecnologia em Design de Moda na Universidade Luterana do Brasil, e estava sem tempo.


O tratamento dedicado a Natália Anderle, em 2008, havia sido muito diferente. Filha de uma família humilde de Roca Sales, no interior do estado, ela era modelo desde os 15 anos, mas trabalhava em uma clínica de estética, como cosmetóloga, para reforçar a renda familiar. Uma noite, o próprio Evandro Hazzy a abordou no Orkut, o site de relacionamentos na internet. “Eu tenho alguns olheiros, mas nesse dia eu mesmo estava fuçando quando a foto dela me chamou a atenção”, disse o missólogo. Natália concorreu pela cidade de Encantado e foi eleita Miss Rio Grande do Sul em outubro de 2007 “praticamente crua”, segundo ela. Hazzy levou a miss para morar em sua casa, contratou um fonoaudiólogo “para amenizar o sotaque carregado do interior” e um personal trainer. O próprio Hazzy preparava-a para os desfiles na passarela e aproveitava as refeições para lhe dar aulas de boas maneiras. Natália foi a sexta gaúcha a ser eleita Miss Brasil em dez anos, todas sob a tutela dele.


Nelson Heller não é o único a oferecer seus serviços gratuitamente a candidatas. Patrocinadores disputam as moças para divulgar sapatos, biquínis e vestidos de gala. Enquanto em outros estados cada concorrente municipal paga até 12 mil reais para participar, Hazzy consegue patrocinadores para as candidatas gaúchas. “Como hoje muitas cidades fazem concursos para eleger suas misses, procuro estar presente em todos eles, ainda mais agora, que estou com a intenção de me candidatar a deputado estadual”, confidenciou. “É importante que eu esteja em evidência. Tem até um boato de que o próprio Donald Trump me ligou com uma proposta de passar o Miss Brasil para mim. É só boato. Se fosse verdade, eu não ia sair por aí falando, não é?” 


Organizado hoje pelo empresário americano Donald Trump, o concurso de Miss Universo nasceu nos Estados Unidos, em 1952, de uma dissidência do Miss América. O Brasil só entrou na competição em 1954, conseguindo de cara o segundo lugar com a baiana Martha Rocha, que entrou para a história por ter perdido o título por causa de duas supostas polegadas a mais no quadril – que nos dias de hoje seriam facilmente resolvidas com uma lipoaspiração. No livro O Império de Papel: Os Bastidores de O Cruzeiro, o jornalista Accioly Netto, diretor da revista, desmente a história. Segundo ele, as duas polegadas foram uma invenção de João Martins, fotógrafo que foi cobrir o evento. Em Martha Rocha: uma Biografia, a Miss Brasil afirma que “ninguém nunca me apresentou uma versão convincente sobre o detalhe que ficaria famoso – aquele que foi sem talvez nunca ter sido. Nos Estados Unidos, nunca ninguém me tirou as medidas”.


A competição teve sua era de ouro no Brasil dos anos 60, quando o país conquistou seus dois títulos no Miss Universo. Além de Ieda Maria Vargas, em 1963, a baiana Martha Vasconcellos repetiu o feito cinco anos depois. Miss Brasil em 1969, a atriz Vera Fischer relembra os bastidores do concurso em Um Leão por Dia, a sua segunda autobiografia. Na época, nem os apliques de cabelo eram permitidos. “Eu os enganava, usando todos os dias uma peruca diferente”, conta. As cirurgias plásticas só foram permitidas em 1990.


Como foi a primeira miss estadual eleita, Bruna acompanhou pela internet a eleição de todos os outros estados. “O meu único alívio era ver que não falavam só do meu nariz: criticavam o sorriso da Distrito Federal, acusavam a mineira de não ter nem 1,70 metro”, disse. Ao ver que seu nome constava cada vez menos dos rankings de favoritas, Bruna voltou ao consultório de Nelson Heller, que admitiu que o nariz precisava de um retoque. “O tipo de pele da Bruna desfavorece. Como ela tem uma origem de índio, de negro junto, a pele dela é dura, grossa, difícil de trabalhar”, justificou o médico.


A segunda cirurgia foi feita no dia 1º de setembro. Ao tirar as ataduras, Bruna levou um susto: seu nariz havia ficado ainda menor. No mesmo mês, procurou o doutor Denis Valente para saber o que era possível fazer. Valente diz que ficou impressionado ao rever Bruna pela primeira vez desde o concurso, três meses antes. “Eu sabia que era uma coisa que não tinha agradado. Como eu opero muita miss, alguns amigos, pensando que tinha sido eu, perguntavam: ‘Pô, Denis, mas o que tu fez no nariz da guria?'”, disse o cirurgião. Seu veredicto: “Ele tirou muita cartilagem. A gente tem um ângulo entre o lábio e o nariz, que nas mulheres deve ter mais ou menos 110 graus. O da Bruna estava em 140, 160 graus. Ou seja, estava muito aberto, você conseguia enxergar toda a narina dela.”


Segundo Valente, Bruna tinha também uma irregularidade de cartilagens, um lado estava diferente do outro. A dificuldade de respirar era causada pela alteração de uma estrutura chamada válvula nasal interna. Em um condomínio de luxo em Porto Alegre, sentada no sofá do apartamento da irmã que é modelo, Bruna me mostrou a galeria de fotos suas no celular. Ela mesma registrou as modificações no rosto ao longo das cirurgias. “Olha essa daqui, que eu tirei de baixo, como um buraco é maior que o outro”, apontou.


Num primeiro momento, Denis Valente não quis se envolver, apesar de Evandro Hazzy ter-lhe pedido para assumir o caso de Bruna. “Eu disse: ‘Evandro, te vira, eu não quero me meter.’ Pô, fez com outro cara, deixa com outro cara, não tenho nenhum interesse em mexer nisso.” Como Bruna insistisse, Valente pediu que seu mestre Almir Nácul fizesse uma avaliação. “Ele tem de cirurgia plástica o que eu tenho de vida, achei que era um caso para ele”, explicou. “Além disso, ele tinha muito interesse em fazer esse rosto. Ano passado, ele e o Heller tinham entrado numa briga de quem tinha a paternidade da Natália Anderle, já que os dois fizeram o rosto dela.” Os cirurgiões terminaram aceitando assumir o caso de Bruna, mas não antes do intervalo de seis meses recomendado entre uma cirurgia e outra.


No dia 1º de abril, a pouco mais de um mês do Miss Brasil, Bruna foi internada para a troca da prótese de silicone. No lugar dos 325 mililitros que Heller havia colocado, Denis Valente optou por uma prótese de 180.


À vontade com a tecnologia em seu amplo consultório, Almir Nácul controla de seu computador uma apresentação de slides exibida em uma tela de tevê de plasma na parede. São fotos comparativas de vários pacientes – dentre eles, habitués das revistas de fofocas – insatisfeitos com uma plástica malsucedida, e após seu trabalho de recauchutagem. Nácul fez a primeira bioplastia no rosto de Bruna Felisberto em 14 de abril, depois que a foto oficial para o Miss Brasil havia sido tirada, para horror da gaúcha. Segundo o médico, foi possível recuperar cerca de 30% do volume perdido.


“Meu reinado de um ano como Miss Rio Grande do Sul foi dentro de casa”, queixou-se Bruna, tentando disfarçar as lágrimas. Sem contar com o apoio de Hazzy, e sem patrocínio, ela bancou os cuidados com os cabelos, a ginástica e a roupa. “Nem roupa para passar a semana de concentração em São Paulo eu tinha”, contou. “Nunca fui de usar salto alto, mas tratei de comprar salto 12, ou aquelas gurias baixinhas iam parecer mais altas do que eu.” Também bancou os custos de hospital com as duas cirurgias de correção. Resultado: seu nome foi parar no Serviço de Proteção ao Crédito com uma dívida de mais de 20 mil reais. “Isso, fora o dinheiro que a minha mãe e a minha irmã gastaram comigo”, contabilizou. 


Bruna Felisberto embarcou sozinha para São Paulo no dia 29 de abril. Enquanto isso, Evandro Hazzy já havia virado a página e brilhava nos bastidores da semi-final do Miss Rio Grande do Sul 2010. A noite era de glamour. Como 75 municípios haviam mandado suas representantes, a organização optou por fazer uma primeira triagem antes da decisão de qual gaúcha seria a candidata a Miss Brasil no ano seguinte. Numa entrevista no fim do torneio, Hazzy listou suas seis misses vitoriosas e afirmou, confiante: “Eu não entro em concurso para brincar, eu tenho certeza de que o título de Miss Brasil 2010 vem para o nosso estado.”


Fora uma faixa institucional do evento com seu rosto, no fundo do palco, ninguém parecia se lembrar de que o Miss Brasil 2009 ainda não havia acontecido – e de que Bruna ainda estava no páreo. O grande destaque da noite era sua xará Bruna Jaroceski, coroada Miss Canoas na noite anterior, sob as exclamações de Hazzy: “Essa menina é translumbrante! Tem padrão de Miss Universo, escreve o que eu estou dizendo.” Veterana, Bruna Jaroceski havia competido com Bruna Felisberto no ano anterior, representando a cidade de Santa Maria, mas ficou em quarto lugar. Para 2010, já com a assessoria de Evandro Hazzy, a miss parecia outra: os cabelos castanhos e lisos estavam mais claros e cacheados, a pele mais bronzeada, os seios aumentados.


Na concentração para o Miss Brasil em São Paulo, Bruna Felisberto não demorou a se entrosar com as outras candidatas. “Não sei se foi por delicadeza, mas ninguém tocou no assunto do meu nariz”, disse. É comum as concorrentes se portarem como amigas de infância em poucos dias de convívio, dentro de uma competição. “Elas estão longe da família, dos amigos, é natural que se apeguem umas às outras, e a nós também”, explica a chaperona Josely Campos, responsável por manter a disciplina e fazer as candidatas cumprirem horários e obrigações.


Outra motivação para fazer amizade com todo mundo é a eleição da Miss Simpatia, escolhida pelas próprias garotas no decorrer da semana. A mais carismática recebe uma faixa no grande dia, um tipo de prêmio de consolação. A vencedora raramente acumula os dois títulos, porque as concorrentes tendem a não simpatizar com as favoritas. Com a internet, a maioria já chega à concentração sabendo quais delas são as mais cotadas.


“Ao contrário dos últimos anos, o nível do concurso em 2009 estava muito bom, havia muitas favoritas”, elogiou o missólogo baiano Roberto Macedo. As preferidas eram Rayana Breda, a Miss Pará, e Rayanne Morais, de Minas Gerais. Além da semelhança dos nomes, que fazia com que fossem confundidas, quis a ordem alfabética dos estados que as duas dividissem o mesmo quarto no hotel – o que só fez aumentar a antipatia de uma pela outra.


Concorrente à moda antiga, a mineira Rayanne sonhava desde menina com o título de Miss Brasil. Aos 14 anos, ela já era modelo fotográfico. Com uma beleza que lembra um pouco a atriz Brooke Shields dos tempos de A Lagoa Azul, Rayanne chama mais a atenção nas fotos do que na passarela: apesar do declarado 1,74 metro, sem salto ela aparenta ter 10 centímetros a menos.


Modelo desde os 15 anos, a paraense Rayana resolveu tentar a carreira de miss para ganhar mais. Apesar de ter no currículo desfiles na São Paulo Fashion Week e trabalhos no exterior para a Maison Valentino, Rayana não conseguiu contabilizar muito nos quatro anos de carreira de modelo, que lhe renderam pouco mais do que um Ford Ka. “Como miss, eu posso faturar facilmente 1 milhão de reais no ano de reinado”, calculou. Capixaba de nascimento, ela mencionou que o título em seu estado é dado por indicação, e por isso concorreu pelo Pará, onde seu pai nasceu. Quando lhe dizem que não parece paraense, a loira de olhos azuis contra-ataca com rapidez. “Quem disse que o filho adotivo tem menos valor do que o filho biológico?”, pergunta, com a mão na cintura e uma piscadinha. “Para concorrer, Rayana engordou sete quilos, colocou próteses de 275 mililitros de silicone e escureceu um pouco os cabelos. Pouco antes do concurso em São Paulo, ela fez aplicação de porcelana nos dentes, implante de cílios e retoque na sobrancelha. 


“Chegando a São Paulo me dei conta da preparação que eu não tive”, lamentou a gaúcha Bruna. “O coordenador da Miss Minas até a mandou para os Estados Unidos, enquanto eu passei um ano mendigando um curso de inglês para o Evandro, e ele ignorou. Enquanto várias já tinham experimentado o vestido, eu fingia que a cor do meu era segredo para não admitir que não sabia qual era.” Mas o confronto com as concorrentes fez Bruna recuperar a autoestima. Sua altura e postura na passarela faziam com que ela se mantivesse o tempo todo entre as que mais chamavam a atenção nos ensaios, e os retoques nos seios e no nariz deram-lhe confiança. Nos fóruns da internet, muitos comentavam que a miss gaúcha surpreendia pessoalmente.


Apesar das proibições impostas pelo confinamento, muitos fãs do concurso, além de parentes e coordenadores das misses, hospedaram-se no mesmo hotel em Moema para poder acompanhar mais de perto a rotina das candidatas. Miriam Felisberto, a mãe de Bruna, garantiu sua reserva para toda a semana, acompanhada das outras duas filhas. O pai só pôde vir no dia do desfile final. Hazzy também se hospedou lá, mas não era figurinha fácil no saguão, como vários outros coordenadores. Ao contrário dos outros anos, o cirurgião Denis Valente não o acompanhou. “Eu sei que ia chegar lá e iam falar: ‘Bá, o nariz da tua candidata'”, disse. “E até eu explicar ‘pô, não fui eu’, é difícil.”


Depois de dez dias de passeios, visitas oficiais e ensaios, chegou o dia do desfile com trajes típicos, quando as candidatas representam alegoricamente os seus estados. A fantasia da mineira Rayanne foi escolhida como a mais bonita pelos jurados. Homenageando a religiosidade do povo mineiro, a Miss Minas parecia uma imagem da Virgem Maria. O estilista Alexandre Dutra, que todos os anos faz o traje de gala das candidatas, recebeu o prêmio no valor de 5 mil reais. Na noite seguinte, 9 de maio, a da final, a tensão era grande. Como as candidatas tinham pouco tempo para se trocar entre um desfile e outro, e o acesso ao camarim se dava por um longo corredor numa passagem subterrânea, a produção improvisou um espaço na parte de trás do palco do Memorial da América Latina.


Logo que pôs o vestido cor-de-rosa, Rayanne correu desesperada, gritando que o zíper havia travado. De prontidão para emergências, uma costureira fez os reparos. Quando ela tomou seu lugar na fila, mais relaxada, as outras candidatas já aguardavam a entrada no palco. Como teriam que subir uma escada para descer para o palco, todas seguravam as barras dos vestidos, para evitar tropeços. Ao ver Rayanne com a barra abaixada, Denise Ribeiro, a Miss Distrito Federal, levantou a saia da concorrente para confirmar suas suspeitas: em vez da sandália padrão para o desfile, a mineira usava sua plataforma de acrílico, que a fazia ganhar alguns centímetros. Houve comoção e a Miss Minas Gerais foi obrigada a trocar de sandália, sob protestos, enquanto tentava justificar que havia arrebentado a que tinham lhe dado.


As misses ainda desfilaram de biquíni, traje casual e, por último, de maiô, antes da escolha das cinco finalistas, o “Top 5”. A gaúcha Bruna não foi chamada, e mais tarde saberia que tinha sido por pouco: os jurados a colocaram em sexto lugar. Só as cinco convocadas tiveram que responder a uma das tradicionais perguntas: “Quem merece ser aplaudido de pé?”, “Qual foi a maior lição que você já teve, e quem ensinou?” e “Quem está fazendo falta hoje?” A apresentadora Renata Fan, Miss Brasil 99, explica: “Não se trata de um teste de inteligência, muito pelo contrário. As perguntas são para testar a desenvoltura das concorrentes na frente do público.”


Nervosa, a Miss Pará Rayana se confundiu e disse que daria parabéns pelo aniversário de morte de Ayrton Senna, em vez de falar que sentia falta do ídolo. Chegou arrasada aos bastidores: “Eu não acredito que fiz isso!” A chamada em ordem decrescente confirmou a derrota: Ceará em quinto lugar, Pará em quarto, Distrito Federal em terceiro. Quando só sobraram a favorita Rayanne e a esquecida Miss Rio Grande do Norte, as demais candidatas correram para o camarim. Só a paraense Rayana olhava, inconformada, o telão atrás do palco, quando foi feito o anúncio: “A Miss Brasil 2009 é a Miss Rio Grande do Norte, Larissa Costa!” Vingada, Rayana enxugou as lágrimas, pulou e abraçou quem estivesse por perto. As outras garotas voltaram correndo para prestigiar o título da não favorita.


Hazzy não ficou para a festa de despedida. “Não foi por despeito, fiquei realmente feliz pela candidata do Rio Grande do Norte, mas estava cansado, queria dormir. Eu vinha de uma sequência de eventos, de um período desgastante”, justificou. Bruna, ao contrário, aproveitou a presença da família e dos amigos com a sensação de missão cumprida e só voltou ao hotel às cinco da manhã. Acordada pela mãe às 13 horas, a miss se deu conta de que não sabia o horário do vôo. Ligou para Hazzy, que já estava no aeroporto, e ouviu que seu avião partiria em duas horas. A família ajudou a fazer a mala e conseguiram chegar a Congonhas em tempo. “Mas o Evandro esqueceu de avisar que o avião sairia de Guarulhos”, contou Bruna. “Foi para fechar com chave de ouro.” A irmã Vanessa, querendo acabar logo com a história, pagou as passagens de volta a Porto Alegre, de Congonhas mesmo.


“A Bruna tinha chances reais de conquistar esse título se não fosse pela operação malsucedida”, disse Denis Valente. Uma semana depois do concurso, em seu escritório, Evandro Hazzy discordou do cirurgião: “A derrota no Miss Brasil não foi por causa de um nariz, não existe isso. Falar depois de um resultado é complicado. Tem várias pessoas que olham o nariz dela e acham que ficou lindo, outros que batem numa tecla de que ficou pequeno, com uma marca em cima. Mas isso é porque tentam nos agredir, agredir as gaúchas. Eu acho que ficou bem harmônico.”


Bruna disse que entrará com um processo contra Nelson Heller, e já pediu a Denis Valente as fotos que o cirurgião fez a cada consulta. “Infelizmente, já fui testemunha mais de uma vez”, afirmou Valente, que está inclinado a depor. “O caso da Bruna é muito dramático, porque é uma pessoa em altíssima exposição, que está em cartazes, que apareceu na televisão em rede nacional, e passou por cirurgias plásticas extremamente malsucedidas.”


Deitada no sofá da irmã, depois de comer sem culpa um pedaço de bolo acompanhado de um copo de refrigerante, a miss gaúcha assiste em silêncio a um comercial de televisão protagonizado por Gisele Bündchen, sua conterrânea. “Olha que nariguda e linda que ela é: quem, em sã consciência, ia querer mexer nesse nariz?”, pergunta a mãe. “O Evandro Hazzy!”, responde prontamente Bruna, com um sorriso amargo nos lábios.


PAULA SCARPIN


Paula Scarpin é repórter da piauí desde 2007. Também é responsável pelos podcasts no site da revista


http://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-miss-do-nariz-sutil/


 

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